STATCOUNTER

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Tuesday, August 27, 2019

Morrer de burocracia II


Gabrielle era uma menina de cinco anos, alegre e vivaz, com olhinhos negros que pareciam falar. Teve uma doença raríssima e foi parar num hospital pediátrico que é uma referência no sul do país - vejam bem, no sul do país. A equipe médica, dedicada, bem que tentou, mas não atinou com o diagnóstico correto. Seus testes foram enviados a São Paulo, como era, e ainda é, o padrão de comportamento. Alguns estados não tinham laboratórios em condições de analisar as amostras de testes relativamente simples. A maioria dos estados não hospedava laboratórios em condições de processar e analisar amostras um pouco mais complexas. A falta de equipamentos no local fazia com que muitas amostras fossem enviadas para São Paulo. Esse envio adicionava tempo de espera até o tratamento começar. Preparação da amostra para viagem; conexão com a transportadora; transporte até o laboratório em São Paulo, Lá, o tempo de processamento não é instantâneo. Há tempo perdido também. Em cada etapa havia papel, assinaturas, carimbos. Essas demoras foram fatais. As informações urgentes eram enviadas por telefone e/ou fax.
“São Paulo”, me perdoem os paulistófilos mais exacerbados, tão pouco é a capital do mundo. A equipe não conseguiu chegar a um diagnóstico. Porém, houve um acaso, que poderia ter alterado o triste destino que afetaria a vida de Gabrielle. Um dos médicos de outro departamento, por casualidade, havia visto ou sabido de um caso com características semelhantes. O caso foi rapidamente estudado e resolvido. Após a receber a amostra, em 24 horas o diagnóstico chegou ao hospital pediátrico, mas era tarde. Devido à trombose e necrose das artérias distais, ela perdeu as duas pernas e um braço. Gabrielle gostava de dançar e continuou alegre e brincava de dançar com os seus tocos. A alegria de Gabrielle provocou lágrimas na equipe médica. Quando tive notícia do seu caso, Gabrielle esperava inocentemente as próteses que "chegarão em breve". Em muitos desses casos, a dureza da realidade vem depois, talvez na adolescência, talvez antes. Nós, humanos, somos uma espécie desumana. Crianças como Gabrielle sofrem discriminação e bullying.
Hoje, quase toda a informação médica está disponível pela internet. Porém, os médicos precisam saber idiomas, sobretudo Inglês, e ter acesso local, fácil, a bases de dados atualizadas que são de extrema utilidade. Há programas e aplicativos que fazem isso. Porém, um sistema computarizado de informações indexadas e cruzadas, nacional e internacional, à disposição do pessoal de todos os hospitais brasileiros salvaria muitas vidas e facilitaria, particularmente, o diagnóstico de pacientes com doenças com as que ninguém, médico, enfermeira ou laboratorista, teve experiência clínica.
Uma das médicas pediatras que entrevistei, chamou esse sistema de SOS diagnóstico. Gabrielle foi tratada em um hospital pediátrico de referência no sul do país por uma equipe dedicada que sofreu e sofre por não ter diagnosticado a doença 24 ou 48 horas antes. Poderia fazer a diferença. Porém, não tinham como fazê-lo. O mesmo hospital que, repito, é referência, não tinha um aparelho de Tomografia Computarizada (TC). Os pacientes tinham que sair para fazer o exame em outro lugar – independentemente do estado físico, alguns em estado grave, outros não, chovesse ou fizesse sol, frio ou calor. Além disso, havia e ainda há necessidade de autorizações, assinaturas e carimbos; a burocracia protela e os exames não são feitos com a rapidez necessária. Alguns morreram e outros morrerão por causa da lentidão no processamento das autorizações.
Lembrei as palavras de um ativista americano, aidético, que declarou que não queria morrer de “red tape”, de burocracia no processamento dos recursos para pesquisas. Morreu. As vítimas preferenciais da AIDS naquela época, principalmente gays e receptores de transfusão de sangue contaminado, morreram devido à falta de recursos para tratar essa doença, parcialmente atribuível ao preconceito de Ronald Reagan e sua equipe política conservadora. Não sabemos quantas vidas humanas teriam sido salvas se o combate sério à AIDS, através da pesquisa e da prevenção, não tivesse esperado quase uma década.
O que custa um aparelho de TC de corpo inteiro? De acordo com um documento do Departamento de Defesa dos Estados Unidos - CT-Related Policies of the Department of Defense and the Veterans Administration –custa perto de 500 mil dólares e bastavam 1.500 usos ao ano para justificar a sua aquisição. São somente quatro usos ao dia. Na cultura do dinheiro que, infelizmente, é a nossa também, o custo em vida e sofrimento não foi sequer estimado e não entrou na equação.
Em outros lugares do país, a situação é muito pior, catastrófica: não há leitos, falta tudo, até soro fisiológico. Ironicamente, o nosso Presidente Bolsonaro rejeita os 133 milhões de reais vindos da Noruega e outros 155 milhões vindos da Alemanha. Destinados a combater o desmatamento na Amazônia. Porém, poderiam aliviar outros orçamentos e liberar recursos para pagar muitos equipamentos médicos que ainda não existem em amplas áreas da região amazônica.
Nem só de burocracia se morre no Brasil: se morre de política também. Francine era uma menina inteligente, pobre, de olhos verdes que sofreu queimaduras por álcool em quase todo o corpo e morreu aos 14 anos. Estava tão desfigurada que vários achavam que a morte foi a melhor solução, ainda que triste. O álcool líquido, que é uma das causas principais de queimaduras em crianças (o gel reduz dramaticamente o número de acidentes), era proibido naquele estado, mas as produtoras pressionaram e os deputados estaduais não resistiram. Permitiram o uso. Não houve debate político porque não há lobby que defenda os interesses das crianças que serão mortas ou desfiguradas. Os médicos escreveram para os jornais protestando, mas os políticos não ouviram. Francine, e outras crianças, morreram queimadas - morre uma por dia no país.
Mas não só de burocracia e política se morre no Brasil. Tomando dados daquela época, os R$ 169 milhões super-faturados na obra do TRT paulista, desvio coordenado pelo juiz Nicolau dos Santos Neto, seriam suficientes para instalar CT scans em cento e trinta hospitais; naquela época, outra gangue roubou mais de 120 milhões do INSS, com os que dotaríamos mil postos de saúde carentes de materiais essenciais por um ano. Os dados de hoje são muito mais elevados.
Mas não só de burocracia, política e corrupção ostensiva morrem os brasileiros. O setor público gastou, naquele ano, 13 bilhões de reais com passagens aéreas, água, luz, telefone, consultorias, pagamentos a terceiros, boys, cafezinho etc. Muitos não viajam de classe turista, como nós: viajam de Classe Executiva. De lá para cá, só piorou.
Estado rico, povo pobre.
Uma redução modesta de 20% nesses gastos nos deixaria com 2.6 bilhões para investir. Não dá para estimar quantas vidas seriam salvas com esses recursos.
Quando passo por um cemitério, não consigo deixar de perguntar: quantos dos que estão aqui morreram de burocracia? E de corrupção? E quantos de vocês, que me estão lendo, ou seus parentes e amigos, serão vítimas do Estado Rico e suas mazelas?

Gláucio Ary Dillon Soares

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