STATCOUNTER

Um espaço para que pesquisadores nas Ciências Humanas discutam suas idéias, seus projetos, suas análises.

Tuesday, May 21, 2019

O dano causado por um modelo que soma zero

Estamos vendo o que significa um modelo que soma zero. Em várias administrações, em países diferentes, quando medidas que reduziram recursos, cargos etc. foram implementadas, as reações foram semelhantes às que estamos vendo. Os que estavam ameaçados de perder algo – recursos orçamentários, prestígio, status de ministério ou de secretaria especial etc. – protestaram e continuaram protestando. O modelo que soma zero surgiu quando foi tomada a decisão de reduzir o número de ministérios e enfrentar o rombo fiscal. Os protestos já surgiram em muitas áreas, como, por exemplo, a relacionada à cultura, ou no caso, também em andamento, da mudança da Secretaria de Direitos Humanos que possivelmente seria transferida para o Ministério da Justiça. Em um debate interno, que estou acompanhando, surgiu a pergunta necessária sobre o funcionamento de um órgão do governo. No debate, que é essencialmente político, estão sendo debatidos os ganhos e as perdas num discurso em que o órgão é tratado em forma abstrata. É um debate político sobre alocação de recursos, poder e prestígio. Nesse debate, que sempre surge quando há cortes de algum tipo, inclusive aqueles que tem a ver com símbolos de poder, há contraste entre a realidade, o órgão como ele é, e a versão publicitária, divulgada, pública, aperfeiçoada, idealizada, que não existe. A realidade desaparece. A versão idealizada é afirmada e reafirmada, soberana. Quando foi colocado o tema da funcionalidade, de onde o órgão funcionaria melhor, voltou ao palco o órgão como ele é. Em todos os casos, é patente o que está em jogo para os grupos de pressão: não é um projeto para o país, certamente não é um projeto social, é a política simples de defesa dos interesses próprios através da pressão política.

Às vezes a disparidade entre o projeto anunciado (e desejado) e o processo que realmente acontece, é surpreendente. O exemplo mais ameaçador é a escolha de André Moura para líder do governo na Câmara dos Deputados. Para mim, mostra, apenas, que quem domina a Câmara é o baixo clero e não o governo. Se assim for, talvez o homem mais influente naquele recinto continue a ser Eduardo Cunha. Um horror.

Qual o problema desses procedimentos, inclusive dos legítimos protestos numa situação de evidente falta de recursos para satisfazer a todos? O principal problema é que o somatório dos êxitos de grupos específicos não significa o maior benefício para a maioria dos excluídos. Significa, apenas, que os grupos mais poderosos, mais influentes e melhor organizados, por exemplo, os sindicalizados, juízes, promotores, deputados e senadores, os que trabalham para o estado, entre muitos outros, terão suas necessidades atendidas primeiro, antes de que a maioria dos que necessitam de atendimento básico, particularmente nas áreas da saúde, da educação e da segurança pública, seja atendida. Dada a magnitude do rombo fiscal, não há como ser otimista e os recursos necessários para os despossuídos virão por último. Último pode significar muito tempo.

Na política que responde, apenas, aos grupos de pressão organizados, os mais pobres e excluídos do poder, sem influência, serão os mais prejudicados, os últimos que serão atendidos.

É a política do cotidiano, do quem pode, pode, quem não pode sofre.


Gláucio Soares

Monday, May 20, 2019

Um despertar doloroso

Há despertares estranhos; há alguns que chegam a ser dolorosos. Um despertar que tive algumas vezes nos últimos anos provocou uma dor na alma.

O que era esse despertar?

Ele acontecia depois de um sonho bom, gostoso. Neles, eu voltava de tratamento nos Estados Unidos; antes, passara algum tempo examinando possíveis presentinhos, possíveis agrados, para trazer para minha mãe. Neles, sempre arrancava um sorriso discreto, silencioso, de satisfação. O agrado agradou... Em alguns desses sonhos, dois ou três, cheguei a levantar da cama ainda meio dormido para buscar o presente e levá-lo. Ansioso de carteirinha, não ia esperar por uma hora convencionalmente decente, nove ou dez da manhã, sei lá. Os hábitos forjados em minha mãe desde seus tempos de professora primária, que incluíam transportes múltiplos, como bonde, ônibus e o famoso pedillac, a obrigavam a levantar muito cedo. Saindo de Laranjeiras destino Quintino Bocaiúva. Minha mãe acordava cedo.

Esperar não era o meu forte. Ia buscar o presente, subir pela escada do segundo ao oitavo andar, levar logo o presente cuidadosamente escolhido e deliciar-me com aquele sorriso subliminar de satisfação materna.

Mas a realidade chegava logo, logo, dura, fria e triste. Minha mãe morrera há anos. Eram necessários alguns minutos para que eu caísse na real: minha mãe morrera e eu não a veria mais. Não traria mais presentes. Não obstante, eu ainda precisava da minha velhinha. Preciso até hoje.

Hoje, o velhinho sou eu. Oitenta e lá vai fumaça. Não obstante, recebi uma benção divina, ter mãe viva até, quase, os meus setenta anos.

Minha mãe viveu e morreu lúcida. Cultivava a lucidez através de leituras e de jogos de biriba. Ia, diariamente, do apê até o bar do tênis jogar biriba no Fluminense. Várias outras pessoas de diferentes idades, mas com predomínio de idosos, formavam mesas. Sol quente e chuva fina não eram impedimento para a minha mãe. A maior dificuldade eram as escadas, da entrada até o tênis, e a pior, que ia do tênis até a passagem que leva ao Bar do Tênis. Eu, hoje, tenho que dar uma ou duas paradas enquanto me puxo pelo corrimão. Preciso dos braços para ajudar as pernas. Ela, mais para o final da vida, precisava do apoio de uma acompanhante.

Quando as pernas de minha mãe cederam de vez, passei a ter outra função, a de parceiro no biriba. Jogávamos todos os dias.

O biriba contribuía para a minha saúde, porque eu trucidava seis andares de escadas diariamente. Em raros dias, subia duas vezes no mesmo dia.

Entrava no apê de Mamãe e lá estava ela, sentada, incrivelmente erecta para seus noventa anos e mais, a cabecinha branca imersa em seus pensamentos, esperando. Era o ponto alto do dia para ela. Conversávamos um pouco, mas, progressivamente, o diálogo virou monólogo devido à perda de audição, nos últimos anos praticamente total. Já não adiantavam os aparelhos no ouvido, o que me roubou o prazer de trazer mini-baterias aproveitando qualquer viagem.

Umas poucas vezes falhei e a acompanhante me informou que ela ficava horas à espera do filho-parceiro que não chegava. Vocês podem imaginar o estrago que esse conhecimento causou numa pessoa parcialmente movida a culpa.

“Dona Dillon”, como a chamavam seus alunos. Minha mãe. Ao sair do apê, lá em baixo, perto da ambulância, disse, de dedo em riste: “Vou enfrentar com coragem e dignidade.”

E enfrentou a morte com coragem e dignidade.

Por que estou escrevendo essa estória?

A ocasião foi propiciada pelo Dia das Mães e reflexões sobre ele.

Há, também, uma auto-atribuída missão de distribuir um conhecimento, sempre como hipóteses, aplicáveis ou não, numa área preterida pelos nossos pesquisadores, sobre-preocupados com explicações “infra-estruturais” em detrimento de uma gama mais ampla de insumos para a pesquisa e as teorias sociológicas.

Um dado importantíssimo tem sido negligenciado, o aumento da esperança de vida ao nascer, no Brasil, de menos de 34 anos em 1900, para 76, em 2019, teve consequências para a família. Cresceram as famílias multigeracionais; cresceu o número de pessoas da Terceira Idade com um ou ambos genitores vivos. Essas mudanças significam um desafio extra para pais e mães que devem educar seus próprios filhos e filhas e, ao mesmo tempo, cuidar de seus próprios pais e mães. Ressurgem, em novo formato, as famílias multigeracionais.

É preciso inserir a idade média ao casar na equação. A idade média das mulheres quando se casam pela primeira vez subiu de 23 anos para 27 entre 1974 e 2014, e a dos homens subiu de 27 anos para 30.

Pensem no que isso significa para uma geração que deve educar filhos adolescentes (e se preocupar muito com a nova violência que atinge uma ampla faixa etária que se estende da pré-adolescência até o início da maturidade) e, ao mesmo tempo, ter alguma ou muita responsabilidade para uma e até duas gerações anteriores, seus próprios pais e mães, avôs e avós. Idosos com problemas de subsistência, muito diferentes por classe social, e a necessidade de tratar, financiar e conviver com doenças cronicas.

As pessoas sobre as quais essas responsabilidades caem pesado também estão mudando. Aumentou o número de divórcios, aumentou o número de unidades residenciais com vinculações multi-familiares, particularmente filhos e filhas de pais diferentes vivendo com a mesma mãe, que se relacionam com avôs e avós diferentes. Portanto, a rede de relações familiares também mudou, e não apenas a idade de seus integrantes.

Mudou e continua mudando.

Infelizmente, não é área que atraia muitos pesquisadores no Brasil, a despeito da sua relevância para as finanças, para as relações afetivas e, sobretudo, para a felicidade de todos os brasileiros e brasileiras.

Quero voltar, reconhecendo que a pretensão é descabida, ao status de senex sapiens. E dar conselhos.

Independentemente da sua idade, curta seus pais e mães, avôs e avós: eles não vivem para sempre. Faça, sempre que puder, aquele carinho e aquele agrado.

Saiba que os velhinhos também amam seus próprios pais e mães e sentem muita falta deles. Os velhinhos, antes de serem velhinhos, foram filhos e filhas. E continuam sendo.

Muito amor.

GLÁUCIO SOARES

Um despertar doloroso

Há despertares estranhos; há alguns que chegam a ser dolorosos. Um despertar que tive algumas vezes nos últimos anos provocou uma dor na alma.
O que era esse despertar?
Ele acontecia depois de um sonho bom, gostoso. Neles, eu voltava de tratamento nos Estados Unidos; antes, passara algum tempo examinando possíveis presentinhos, possíveis agrados, para trazer para minha mãe. Neles, sempre arrancava um sorriso discreto, silencioso, de satisfação. O agrado agradou... Em alguns desses sonhos, dois ou três, cheguei a levantar da cama ainda meio dormido para buscar o presente e levá-lo. Ansioso de carteirinha, não ia esperar por uma hora convencionalmente decente, nove ou dez da manhã, sei lá. Os hábitos forjados em minha mãe desde seus tempos de professora primária, que incluíam transportes múltiplos, como bonde, ônibus e o famoso pedillac, a obrigavam a levantar muito cedo. Saindo de Laranjeiras destino Quintino Bocaiúva. Minha mãe acordava cedo.
Esperar não era o meu forte. Ia buscar o presente, subir pela escada do segundo ao oitavo andar, levar logo o presente cuidadosamente escolhido e deliciar-me com aquele sorriso subliminar de satisfação materna.
Mas a realidade chegava logo, logo, dura, fria e triste. Minha mãe morrera há anos. Eram necessários alguns minutos para que eu caísse na real: minha mãe morrera e eu não a veria mais. Não traria mais presentes. Não obstante, eu ainda precisava da minha velhinha. Preciso até hoje.
Hoje, o velhinho sou eu. Oitenta e lá vai fumaça. Não obstante, recebi uma benção divina, ter mãe viva até, quase, os meus setenta anos.
Minha mãe viveu e morreu lúcida. Cultivava a lucidez através de leituras e de jogos de biriba. Ia, diariamente, do apê até o bar do tênis jogar biriba no Fluminense. Várias outras pessoas de diferentes idades, mas com predomínio de idosos, formavam mesas. Sol quente e chuva fina não eram impedimento para a minha mãe. A maior dificuldade eram as escadas, da entrada até o tênis, e a pior, que ia do tênis até a passagem que leva ao Bar do Tênis. Eu, hoje, tenho que dar uma ou duas paradas enquanto me puxo pelo corrimão. Preciso dos braços para ajudar as pernas. Ela, mais para o final da vida, precisava do apoio de uma acompanhante.
Quando as pernas de minha mãe cederam de vez, passei a ter outra função, a de parceiro no biriba. Jogávamos todos os dias.
O biriba contribuía para a minha saúde, porque eu trucidava seis andares de escadas diariamente. Em raros dias, subia duas vezes no mesmo dia.
Entrava no apê de Mamãe e lá estava ela, sentada, incrivelmente erecta para seus noventa anos e mais, a cabecinha branca imersa em seus pensamentos, esperando. Era o ponto alto do dia para ela. Conversávamos um pouco, mas, progressivamente, o diálogo virou monólogo devido à perda de audição, nos últimos anos praticamente total. Já não adiantavam os aparelhos no ouvido, o que me roubou o prazer de trazer mini-baterias aproveitando qualquer viagem.
Umas poucas vezes falhei e a acompanhante me informou que ela ficava horas à espera do filho-parceiro que não chegava. Vocês podem imaginar o estrago que esse conhecimento causou numa pessoa parcialmente movida a culpa.

“Dona Dillon”, como a chamavam seus alunos. Minha mãe. Ao sair do apê, lá em baixo, perto da ambulância, disse, de dedo em riste: “Vou enfrentar com coragem e dignidade.”

E enfrentou a morte com coragem e dignidade.
Por que estou escrevendo essa estória?
A ocasião foi propiciada pelo Dia das Mães e reflexões sobre ele.
Há, também, uma auto-atribuída missão de distribuir um conhecimento, sempre como hipóteses, aplicáveis ou não, numa área preterida pelos nossos pesquisadores, sobre-preocupados com explicações “infra-estruturais” em detrimento de uma gama mais ampla de insumos para a pesquisa e as teorias sociológicas.
Um dado importantíssimo tem sido negligenciado, o aumento da esperança de vida ao nascer, no Brasil, de menos de 34 anos em 1900, para 76, em 2019, teve consequências para a família. Cresceram as famílias multigeracionais; cresceu o número de pessoas da Terceira Idade com um ou ambos genitores vivos. Essas mudanças significam um desafio extra para pais e mães que devem educar seus próprios filhos e filhas e, ao mesmo tempo, cuidar de seus próprios pais e mães. Ressurgem, em novo formato, as famílias multigeracionais.
É preciso inserir a idade média ao casar na equação. A idade média das mulheres quando se casam pela primeira vez subiu de 23 anos para 27 entre 1974 e 2014, e a dos homens subiu de 27 anos para 30.
Pensem no que isso significa para uma geração que deve educar filhos adolescentes (e se preocupar muito com a nova violência que atinge uma ampla faixa etária que se estende da pré-adolescência até o início da maturidade) e, ao mesmo tempo, ter alguma ou muita responsabilidade para uma e até duas gerações anteriores, seus próprios pais e mães, avôs e avós. Idosos com problemas de subsistência, muito diferentes por classe social, e a necessidade de tratar, financiar e conviver com doenças cronicas.
As pessoas sobre as quais essas responsabilidades caem pesado também estão mudando. Aumentou o número de divórcios, aumentou o número de unidades residenciais com vinculações multi-familiares, particularmente filhos e filhas de pais diferentes vivendo com a mesma mãe, que se relacionam com avôs e avós diferentes. Portanto, a rede de relações familiares também mudou, e não apenas a idade de seus integrantes.
Mudou e continua mudando.
Infelizmente, não é área que atraia muitos pesquisadores no Brasil, a despeito da sua relevância para as finanças, para as relações afetivas e, sobretudo, para a felicidade de todos os brasileiros e brasileiras.
Quero voltar, reconhecendo que a pretensão é descabida, ao status de senex sapiens. E dar conselhos.
Independentemente da sua idade, curta seus pais e mães, avôs e avós: eles não vivem para sempre. Faça, sempre que puder, aquele carinho e aquele agrado.
Saiba que os velhinhos também amam seus próprios pais e mães e sentem muita falta deles. Os velhinhos, antes de serem velhinhos, foram filhos e filhas. E continuam sendo.
Muito amor.

GLÁUCIO SOARES

O Estado, a vovó e os netinhos

Estive em Brasília, onde sou uma pessoa rica. Emocionalmente rica. Tenho dois filhos, dois netinhos e duas netinhas. Curtição pura. Voltei a ser vovô.

Como estou trabalhando sobre o Amor (com A maiúsculo), alimentei esse trabalho, que inclui pesquisar, calcular, pensar, meditar, escrever e outras atividades semelhantes com as emoções de ser e sentir ser vovô.

Desculpem a mudança de estilo mas, analiticamente, ser vovô ou vovó é uma variável. Varia por tipo, intensidade e outras divisões mais. Não é igual, não são as mesmas funções, em todo tempo e lugar.

Consideremos, nesse primeiro pensar, os casos intensivos. Os que são vovôs e vovós várias horas por dia, várias vezes por semana.

O que determina quanto tempo e de que maneira avôs e avós participarão da criação e da educação de netinhos e netinhas não depende só deles, nem apenas das famílias.

Uma pesquisa realizada por Di Gessa et al na Europa mostrou que há diferenças grandes entre os países. É uma pesquisa inteligente e criativa, mas difícil. É, no meu entender, particularmente criativa porque junta “campos” (à la Bourdieu) usualmente separados e distantes entre si. Como os estudos sobre a família, o desenvolvimento institucional e as políticas públicas.

A composição demográfica do país afeta a família;

Pincei o desenvolvimento institucional como uma perspectiva importante para estudar a família. Vários outros fatores, espremidos pelos autores sob o título de “contextuais-estruturais e culturais” têm forte impacto sobre as famílias, inclusive sobre a participação intensiva de avôs e avós na criação e educação de netos e netas.

A análise realizada pelos autores não é estatisticamente simples. Usaram modelos multi-nível.

O que é isso? Como fizeram isso?

Primeiro, usaram dados de um survey com questionário padronizado e amostras nacionais probabilísticas, chamado Survey of Health, Ageing and Retirement in Europe. Esse survey permitiu conhecer as características individuais das crianças, dos seus pais e mães e dos seus avôs e avós. Permite saber quanto podemos atribuir a essas características individuais.

Os dados sobre a composição demográfica dos países permite ver até onde chega a sua influência; o mesmo vale para as variáveis relacionadas com a distribuição, inclusive a desigualdade de renda. Para mim, a moldura é política e depende de políticas públicas adequadas que, por sua vez, depende de termos um estado saudável que responde às necessidades da população.

Há um resultado contra-intuitivo: é nos países onde a participação tanto das mães quanto das avós na força de trabalho é menor que há mais avós (e, secundariamente, avôs) participando intensamente da criação e da educação das crianças. Na minha leitura, a presença conjunta das mães e das avós na mesma residência é reforçada pela interação entre elas. Essa interação das avós com duas gerações de sua descendência (filha, e netos e netas) tem o benefício de reduzir a solidão, um dos grandes problemas da Terceira Idade. Em verdade, a solidão é péssima companheira em qualquer idade, mas é mais frequente entre idosos e idosas.

Controlando isso tudo, os autores encontraram um peso grande, como esperado, da disponibilidade e da qualidade de serviços públicos nessa área. Encontraram diferenças Norte/Sul. Os países do sul da Europa oferecem menos serviços para crianças. Neles, menos avôs e avós levam netinhos e netinhas à creche e ao pré-primário.

Como assim? Menos?

É, porque um número maior de avôs e avós, sobretudo as avós, passa a ser, eles e elas, a própria creche.

E no Brasil? Qual o panorama?

Os divórcios crescem no Brasil: em 10 anos, de 2004 a 2014, a taxa de divórcios cresceu mais de 160%, pulando de 130 mil para 341 mil. Há muitas rupturas de famílias que ocorrem à margem das instituições legais. Não temos dados confiáveis sobre o número de separações, mas tudo indica que é muito, muito maior. Há filhos? Com quem ficam?

Em 43% dos divórcios, há filhos menores. E, tomando os divórcios como base, a mulher recebe a guarda de nove em cada dez filhos.

A crescente participação das mulheres no mercado de trabalho, em interação com o aumento no número de divórcios e separações significou que o número de mulheres que chefiam as famílias aumentou rapidamente. Acarretou, também, um crescimento na percentagem do total de famílias, definidas residencialmente, dirigidas por mulheres. Eram 17% em 1980; 20% em 1990; 27% em 2000 e 35% em 2010.

O crescente número de separações e divórcios, em conjunção com o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho, gerou uma pergunta: quem cuida das crianças? Há soluções institucionais, como creches e escolas. Não é fácil, nem simples. É muito mais do que quatro paredes e colocar um ou mais adultos para tomar conta de um monte de crianças. O capital físico que é colocado entre quatro paredes conta. Tem que ser estimulante e não pode ser perigoso, sujeito a frequentes acidentes. E o capital humano, assim como o capital social, dentro dessas quatro paredes é muito importante. As pessoas que colocarmos dentro das quatro paredes têm que ser muito bem treinadas. O treinamento leva tempo e as pessoas devem ser educadas e treinadas para enfrentar situações difíceis, inclusive emergências. Nessa atividade, o preço de improvisar pode ser muito alto.

Quando falamos em milhões de crianças, o custo é alto, crescente devido à incorporação de áreas previamente excluídas, e permanente porque o fluxo de novas crianças é contínuo.

No Brasil, se tivéssemos recursos e vontade política, precisaríamos de mais de uma década para recuperar o terreno perdido. Com o estado falido, não há luz no fim do túnel.

O que significa que, no Brasil, avôs e avós continuarão a ser demandados, para preencher o vazio deixado pelo estado caro e falido.

GLÁUCIO SOARES

Ver Di Gessa G, Glaser K, Price D, Ribe E, Tinker A. What Drives National Differences in Intensive Grandparental Childcare in Europe? J Gerontol B Psychol Sci Soc Sci. 2016 Jan;71(1): págs. 141-53.
doi: 10.1093/geronb/gbv007. Epub 2015 Mar 16.

Fazer o bem faz bem

Algumas conversas entre velhinhos e, sobretudo, velhinhas são muito interessantes. Parecem competições verbais sobre quem se sacrifica mais por seus netinhos e suas netinhas. Há, claro, críticas, algumas vitriólicas, sobretudo as dirigidas a noras e genros.
Avôs e avós podem contribuir muito e, exageros à parte, não poucos o fazem.
Porém, essas atividades também podem beneficiar os que dão seu tempo, esforço e dinheiro. Beneficiam, também, os que dão e nã, apenas, os que recebem. Burn e Szoeke demonstram que o conjunto de atividades típicas de vovós e vovôs beneficiam cognitivamente outras pessoas, além dos netinhos e das netinhas e de suas mães e pais.

[ Katherine Burn e Cassandra Szoeke, Is grandparenting a form of social engagement that benefits cognition in ageing? Maturitas, Volume 80, Issue 2, February 2015, pags 122-125.
https://doi.org/10.1016/j.maturitas.2014.10.017]

Quem???
...as vovós e os vovôs!
Ajudar na criação, na proteção e na educação dos netinhos e das netinhas pode beneficiar os dedicados vovôs e vovós. Essas atividades podem estimular mecanismos cognitivos que elevam o nível cognitivo dos idosos. Na média, o declínio cognitivo dos vovôs e vovós que participam da vida dos netinhos é mais lento do que o dos demais idosos.
Porém, esse benefício tem limites. Os vovôs e as vovós que exercem essas atividades num nível muito, muito intenso, que não leva em consideração o declínio natural da capacidade física e psicológica que acompanha a idade, sofrem as consequências do exagero.
Ou seja, muito é bom; demais é demais...
Além disso, a dinâmica do exagero é diferente da das tarefas executadas dentro de limites saudáveis. Inclui serviços prestados a outros, particularmente a filhos e filhas negligentes, mas também a pessoas contratadas que executam mal os serviços para os quais foram contratadas. Esse exagero acelera o declínio cognitivo dos prestativos vovôs e vovós.
Mesmo em países nos quais o setor público funciona, há poucos serviços à disposição dos velhinhos que exercem funções secundárias ou suplementares. Velhinhos e velhinhas só têm acesso a esses serviços quando eles são os cuidadores primários das crianças, como nos casos de morte e abandono de pais e mães.
É possível que os benefícios de ajudar na criação e educação de netinhos e netinhos ajude os velhinhos e velhinhas a viver mais. É o que diz Dr. Sonja Hilbrand, da Universidade de Basel, na Suiça. Ela e sua equipe analisaram dados do Berlin Aging Study.
Essa pesquisa analisou perto de quinhentas pessoas que foram entrevistadas entre 1990 e 1993 e foram acompanhadas até 2009.

[ Sonja Hilbrand, David A. Coall, Denis Gerstorf e Ralph Hertwig, Caregiving within and beyond the family is associated with lower mortality for the caregiver: A prospective study. Evolution and Human Behavior, Volume 38, Issue 3, May 2017, pags 397–403.]

Dividiram esses idosos em três grupos: os que tiveram filhos e/ou filhas e netos e/ou netas; os que tiveram filhos e/ou filhas, mas não tiveram netos ou netas e os que não tiveram filhos nem filhas (e, portanto, não tiveram netos nem netas).
A pergunta central dessa análise era:
Na média, quanto tempo viveram os membros de cada um desses três grupos? Avaliaram a sobrevivência a partir da primeira entrevista, até a data da morte.
A dra. Hilbrand sabia que há vários estudos mostrando que fazer o bem...faz bem. Tratar dos outros, ajudar o próximo, faz bem para a saúde.
Mas... será que afasta a morte?
Os resultados sugerem que sim. Metade dos vovôs e vovós que ajudaram na criação dos netinhos e netinhas estava vivinha da Silva dez anos depois da primeira entrevista.
O grupo mais parecido com esse, os que eram avôs e avós, mas não participavam da educação e criação dos netinhos e netinhas, viveu menos: a metade morreu antes de cinco anos.
E os que não tiveram filhos ou filhas? Foram divididos em dois grupos: os que ajudaram amigos ou vizinhos, seja emocionalmente, seja praticamente, e os que não ajudaram ninguém. Também nesses grupos, sem familiares para ajudar, fazer o bem fez bem. A mediana de sobrevivência dos que ajudavam alguém foi de sete anos, ao passo que no caso dos que não ajudaram ninguém foi de apenas quatro anos.
Claro está que há problemas metodológicos que comprometem os resultados. O número de casos é limitado. A possibilidade de endogenia é clara: pessoas com problemas de saúde, doenças cronicas, recursos físicos e financeiros escassos, têm capacidade de ajudar menor e risco de morte maior. Sem um rigoroso controle dessas condições na primeira entrevista, não sabemos se elas já estavam presentes na primeira entrevista.
Não obstante, até que apareçam dados em contrário, continuo afirmando que fazer o bem faz bem e que amar também faz bem.

GLÁUCIO SOARES

O TRISTE FIM DE UMA VÍTIMA DE MUITAS VIOLÊNCIAS

Columbine é um nome que ficou marcado na história da violência. Em 20 de abril de 1999, há pouco mais de vinte anos, dois estudantes da última série da Columbine High School, no Estado de Colorado, chamados Eric Harris e Dylan Klebold, mataram doze estudantes e um professor. Os assassinos cometeram suicídio.
Houve muitos protestos nos Estados Unidos, mas protestos só se transformam em leis através do Legislativo americano. E o lobby das armas, a NRA (National Rifle Association) tem uma política agressiva com dois alvos: apoiar os deputados e senadores armamentistas e apoiar os adversários dos desarmamentistas. Essa segunda estratégia política não faria muito sentido num sistema proporcional, mas é muito eficiente num sistema majoritário, onde somente um deputado é eleito em cada distrito. No Brasil, a indústria e o comércio armamentistas obtém melhores resultados elegendo políticos favoráveis do que impedindo a eleição de opositores. Apoiaram vários políticos importantes eleitos em 2018.
O total das vítimas de Columbine é maior do que o número de pessoas que morreram no local ou pouco tempo depois, no hospital. Para cada vítima direta, há um número maior de vítimas ocultas, parentes e amigos dos que morreram ou foram feridos. A dor provocada pela violência é muito maior do que a que os olhos podem ver na cena do crime e dura muito tempo -anos, muitos anos, décadas.
O professor assassinado, William "Dave" Sanders, salvou muitas vidas. Foi o terceiro a ser atingido e o último a morrer. Ficou conhecido pela sua coragem e pelo seu sacrifício. Mesmo ferido, continuou protegendo e orientando os estudantes. Uma estimativa coloca em mais de cem o número de vidas que Dave salvou. Mas, coragem e glória à parte, o professor tinha uma família: deixou uma viúva, quatro filhos e filhas sem pai e cinco netinhos e netinhas, que perderam o vovô Dave. Não há estatísticas para a dor dessas pessoas.
Além das vítimas ocultas, relacionadas por laços de família e amizade com os mortos e feridos, há outras vítimas não computadas. Houve 21 feridos na escola e mais três feridos enquanto fugiam do massacre. O trauma psicológico não fecha junto com as feridas das balas.
Um dos feridos era Austin Eubanks. Seu melhor amigo, Corey DePooter, morreu ao seu lado. Já no hospital, para combater a dor dos ferimentos, teve que tomar medicamentos, analgésicos fortes e, depois, opioides. Virou dependente. Conseguiu superar a dependência e se tornou um ativista contra as drogas. Mas os danos ao seu corpo e mente eram profundos. Faleceu há pouco, aos 37 anos. Viveu quase meio século a menos do que a estimativa para uma pessoa normal nascida no mesmo ano nos Estados Unidos. Não há estatísticas para esse tipo de vítimas.
Vivemos num momento, no Brasil, em que a indústria das armas tenta se aproveitar de um momento politicamente favorável para enfraquecer o Estatuto do Desarmamento.
Por que fazem isso?
Por idealismo?
Por dinheiro. Querem ganhar mais dinheiro às custas das nossas vidas.
Simples assim.

GLÁUCIO SOARES