STATCOUNTER

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Monday, May 20, 2019

O Estado, a vovó e os netinhos

Estive em Brasília, onde sou uma pessoa rica. Emocionalmente rica. Tenho dois filhos, dois netinhos e duas netinhas. Curtição pura. Voltei a ser vovô.

Como estou trabalhando sobre o Amor (com A maiúsculo), alimentei esse trabalho, que inclui pesquisar, calcular, pensar, meditar, escrever e outras atividades semelhantes com as emoções de ser e sentir ser vovô.

Desculpem a mudança de estilo mas, analiticamente, ser vovô ou vovó é uma variável. Varia por tipo, intensidade e outras divisões mais. Não é igual, não são as mesmas funções, em todo tempo e lugar.

Consideremos, nesse primeiro pensar, os casos intensivos. Os que são vovôs e vovós várias horas por dia, várias vezes por semana.

O que determina quanto tempo e de que maneira avôs e avós participarão da criação e da educação de netinhos e netinhas não depende só deles, nem apenas das famílias.

Uma pesquisa realizada por Di Gessa et al na Europa mostrou que há diferenças grandes entre os países. É uma pesquisa inteligente e criativa, mas difícil. É, no meu entender, particularmente criativa porque junta “campos” (à la Bourdieu) usualmente separados e distantes entre si. Como os estudos sobre a família, o desenvolvimento institucional e as políticas públicas.

A composição demográfica do país afeta a família;

Pincei o desenvolvimento institucional como uma perspectiva importante para estudar a família. Vários outros fatores, espremidos pelos autores sob o título de “contextuais-estruturais e culturais” têm forte impacto sobre as famílias, inclusive sobre a participação intensiva de avôs e avós na criação e educação de netos e netas.

A análise realizada pelos autores não é estatisticamente simples. Usaram modelos multi-nível.

O que é isso? Como fizeram isso?

Primeiro, usaram dados de um survey com questionário padronizado e amostras nacionais probabilísticas, chamado Survey of Health, Ageing and Retirement in Europe. Esse survey permitiu conhecer as características individuais das crianças, dos seus pais e mães e dos seus avôs e avós. Permite saber quanto podemos atribuir a essas características individuais.

Os dados sobre a composição demográfica dos países permite ver até onde chega a sua influência; o mesmo vale para as variáveis relacionadas com a distribuição, inclusive a desigualdade de renda. Para mim, a moldura é política e depende de políticas públicas adequadas que, por sua vez, depende de termos um estado saudável que responde às necessidades da população.

Há um resultado contra-intuitivo: é nos países onde a participação tanto das mães quanto das avós na força de trabalho é menor que há mais avós (e, secundariamente, avôs) participando intensamente da criação e da educação das crianças. Na minha leitura, a presença conjunta das mães e das avós na mesma residência é reforçada pela interação entre elas. Essa interação das avós com duas gerações de sua descendência (filha, e netos e netas) tem o benefício de reduzir a solidão, um dos grandes problemas da Terceira Idade. Em verdade, a solidão é péssima companheira em qualquer idade, mas é mais frequente entre idosos e idosas.

Controlando isso tudo, os autores encontraram um peso grande, como esperado, da disponibilidade e da qualidade de serviços públicos nessa área. Encontraram diferenças Norte/Sul. Os países do sul da Europa oferecem menos serviços para crianças. Neles, menos avôs e avós levam netinhos e netinhas à creche e ao pré-primário.

Como assim? Menos?

É, porque um número maior de avôs e avós, sobretudo as avós, passa a ser, eles e elas, a própria creche.

E no Brasil? Qual o panorama?

Os divórcios crescem no Brasil: em 10 anos, de 2004 a 2014, a taxa de divórcios cresceu mais de 160%, pulando de 130 mil para 341 mil. Há muitas rupturas de famílias que ocorrem à margem das instituições legais. Não temos dados confiáveis sobre o número de separações, mas tudo indica que é muito, muito maior. Há filhos? Com quem ficam?

Em 43% dos divórcios, há filhos menores. E, tomando os divórcios como base, a mulher recebe a guarda de nove em cada dez filhos.

A crescente participação das mulheres no mercado de trabalho, em interação com o aumento no número de divórcios e separações significou que o número de mulheres que chefiam as famílias aumentou rapidamente. Acarretou, também, um crescimento na percentagem do total de famílias, definidas residencialmente, dirigidas por mulheres. Eram 17% em 1980; 20% em 1990; 27% em 2000 e 35% em 2010.

O crescente número de separações e divórcios, em conjunção com o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho, gerou uma pergunta: quem cuida das crianças? Há soluções institucionais, como creches e escolas. Não é fácil, nem simples. É muito mais do que quatro paredes e colocar um ou mais adultos para tomar conta de um monte de crianças. O capital físico que é colocado entre quatro paredes conta. Tem que ser estimulante e não pode ser perigoso, sujeito a frequentes acidentes. E o capital humano, assim como o capital social, dentro dessas quatro paredes é muito importante. As pessoas que colocarmos dentro das quatro paredes têm que ser muito bem treinadas. O treinamento leva tempo e as pessoas devem ser educadas e treinadas para enfrentar situações difíceis, inclusive emergências. Nessa atividade, o preço de improvisar pode ser muito alto.

Quando falamos em milhões de crianças, o custo é alto, crescente devido à incorporação de áreas previamente excluídas, e permanente porque o fluxo de novas crianças é contínuo.

No Brasil, se tivéssemos recursos e vontade política, precisaríamos de mais de uma década para recuperar o terreno perdido. Com o estado falido, não há luz no fim do túnel.

O que significa que, no Brasil, avôs e avós continuarão a ser demandados, para preencher o vazio deixado pelo estado caro e falido.

GLÁUCIO SOARES

Ver Di Gessa G, Glaser K, Price D, Ribe E, Tinker A. What Drives National Differences in Intensive Grandparental Childcare in Europe? J Gerontol B Psychol Sci Soc Sci. 2016 Jan;71(1): págs. 141-53.
doi: 10.1093/geronb/gbv007. Epub 2015 Mar 16.

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