STATCOUNTER

Um espaço para que pesquisadores nas Ciências Humanas discutam suas idéias, seus projetos, suas análises.

Monday, May 20, 2019

Um despertar doloroso

Há despertares estranhos; há alguns que chegam a ser dolorosos. Um despertar que tive algumas vezes nos últimos anos provocou uma dor na alma.

O que era esse despertar?

Ele acontecia depois de um sonho bom, gostoso. Neles, eu voltava de tratamento nos Estados Unidos; antes, passara algum tempo examinando possíveis presentinhos, possíveis agrados, para trazer para minha mãe. Neles, sempre arrancava um sorriso discreto, silencioso, de satisfação. O agrado agradou... Em alguns desses sonhos, dois ou três, cheguei a levantar da cama ainda meio dormido para buscar o presente e levá-lo. Ansioso de carteirinha, não ia esperar por uma hora convencionalmente decente, nove ou dez da manhã, sei lá. Os hábitos forjados em minha mãe desde seus tempos de professora primária, que incluíam transportes múltiplos, como bonde, ônibus e o famoso pedillac, a obrigavam a levantar muito cedo. Saindo de Laranjeiras destino Quintino Bocaiúva. Minha mãe acordava cedo.

Esperar não era o meu forte. Ia buscar o presente, subir pela escada do segundo ao oitavo andar, levar logo o presente cuidadosamente escolhido e deliciar-me com aquele sorriso subliminar de satisfação materna.

Mas a realidade chegava logo, logo, dura, fria e triste. Minha mãe morrera há anos. Eram necessários alguns minutos para que eu caísse na real: minha mãe morrera e eu não a veria mais. Não traria mais presentes. Não obstante, eu ainda precisava da minha velhinha. Preciso até hoje.

Hoje, o velhinho sou eu. Oitenta e lá vai fumaça. Não obstante, recebi uma benção divina, ter mãe viva até, quase, os meus setenta anos.

Minha mãe viveu e morreu lúcida. Cultivava a lucidez através de leituras e de jogos de biriba. Ia, diariamente, do apê até o bar do tênis jogar biriba no Fluminense. Várias outras pessoas de diferentes idades, mas com predomínio de idosos, formavam mesas. Sol quente e chuva fina não eram impedimento para a minha mãe. A maior dificuldade eram as escadas, da entrada até o tênis, e a pior, que ia do tênis até a passagem que leva ao Bar do Tênis. Eu, hoje, tenho que dar uma ou duas paradas enquanto me puxo pelo corrimão. Preciso dos braços para ajudar as pernas. Ela, mais para o final da vida, precisava do apoio de uma acompanhante.

Quando as pernas de minha mãe cederam de vez, passei a ter outra função, a de parceiro no biriba. Jogávamos todos os dias.

O biriba contribuía para a minha saúde, porque eu trucidava seis andares de escadas diariamente. Em raros dias, subia duas vezes no mesmo dia.

Entrava no apê de Mamãe e lá estava ela, sentada, incrivelmente erecta para seus noventa anos e mais, a cabecinha branca imersa em seus pensamentos, esperando. Era o ponto alto do dia para ela. Conversávamos um pouco, mas, progressivamente, o diálogo virou monólogo devido à perda de audição, nos últimos anos praticamente total. Já não adiantavam os aparelhos no ouvido, o que me roubou o prazer de trazer mini-baterias aproveitando qualquer viagem.

Umas poucas vezes falhei e a acompanhante me informou que ela ficava horas à espera do filho-parceiro que não chegava. Vocês podem imaginar o estrago que esse conhecimento causou numa pessoa parcialmente movida a culpa.

“Dona Dillon”, como a chamavam seus alunos. Minha mãe. Ao sair do apê, lá em baixo, perto da ambulância, disse, de dedo em riste: “Vou enfrentar com coragem e dignidade.”

E enfrentou a morte com coragem e dignidade.

Por que estou escrevendo essa estória?

A ocasião foi propiciada pelo Dia das Mães e reflexões sobre ele.

Há, também, uma auto-atribuída missão de distribuir um conhecimento, sempre como hipóteses, aplicáveis ou não, numa área preterida pelos nossos pesquisadores, sobre-preocupados com explicações “infra-estruturais” em detrimento de uma gama mais ampla de insumos para a pesquisa e as teorias sociológicas.

Um dado importantíssimo tem sido negligenciado, o aumento da esperança de vida ao nascer, no Brasil, de menos de 34 anos em 1900, para 76, em 2019, teve consequências para a família. Cresceram as famílias multigeracionais; cresceu o número de pessoas da Terceira Idade com um ou ambos genitores vivos. Essas mudanças significam um desafio extra para pais e mães que devem educar seus próprios filhos e filhas e, ao mesmo tempo, cuidar de seus próprios pais e mães. Ressurgem, em novo formato, as famílias multigeracionais.

É preciso inserir a idade média ao casar na equação. A idade média das mulheres quando se casam pela primeira vez subiu de 23 anos para 27 entre 1974 e 2014, e a dos homens subiu de 27 anos para 30.

Pensem no que isso significa para uma geração que deve educar filhos adolescentes (e se preocupar muito com a nova violência que atinge uma ampla faixa etária que se estende da pré-adolescência até o início da maturidade) e, ao mesmo tempo, ter alguma ou muita responsabilidade para uma e até duas gerações anteriores, seus próprios pais e mães, avôs e avós. Idosos com problemas de subsistência, muito diferentes por classe social, e a necessidade de tratar, financiar e conviver com doenças cronicas.

As pessoas sobre as quais essas responsabilidades caem pesado também estão mudando. Aumentou o número de divórcios, aumentou o número de unidades residenciais com vinculações multi-familiares, particularmente filhos e filhas de pais diferentes vivendo com a mesma mãe, que se relacionam com avôs e avós diferentes. Portanto, a rede de relações familiares também mudou, e não apenas a idade de seus integrantes.

Mudou e continua mudando.

Infelizmente, não é área que atraia muitos pesquisadores no Brasil, a despeito da sua relevância para as finanças, para as relações afetivas e, sobretudo, para a felicidade de todos os brasileiros e brasileiras.

Quero voltar, reconhecendo que a pretensão é descabida, ao status de senex sapiens. E dar conselhos.

Independentemente da sua idade, curta seus pais e mães, avôs e avós: eles não vivem para sempre. Faça, sempre que puder, aquele carinho e aquele agrado.

Saiba que os velhinhos também amam seus próprios pais e mães e sentem muita falta deles. Os velhinhos, antes de serem velhinhos, foram filhos e filhas. E continuam sendo.

Muito amor.

GLÁUCIO SOARES

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